História do Vinho: da Savana Africana ao Mundo em Aquecimento

A evolução natural dos organismos vivos é impulsionada através de mutações aleatórias no material genético. A maior parte delas é desfavorável. Afetado por estas mutações, o organismo fica doente ou incapacitado e não vive tempo suficiente para gerar descendência.

Porém, algumas mutações são favoráveis ao organismo e permitem uma melhor adaptação ao seu contexto envolvente. Neste caso, o organismo fica favorecido face ao ambiente e à concorrência. Mais bem adaptado, acaba por gerar farta descendência e perpetuar assim a mutação através das gerações subsequentes.

Uma Enzima Com Gosto Pelo Álcool

Ora, é claro que a história da nossa espécie é rica nestas mutações. Uma delas ocorreu algures em África há 10 milhões de anos atrás. Tal mutação criou a enzima ADH4, a qual permitiu aos nossos antepassados metabolizar o álcool com muito mais rapidez e segurança.

Dotados com a nova enzima, estes antepassados do Homo sapiens obtiveram acesso a uma fonte alimentar até aí impossível de aproveitar: os frutos em decomposição que se espalhavam pelo solo da savana e que eram apenas consumidos por fungos, bactérias e invertebrados.

Os nossos precursores tinham boas razões para comer frutos em decomposição. De facto, num ambiente onde o alimento era escasso, os frutos fermentados eram fáceis de encontrar e forneciam uma fonte nutricional não disponível a rivais destituídos da enzima ADH4; além disso, o conteúdo calórico dos frutos era potenciado pela presença de etanol. E terá sido deste modo que a futura Humanidade adquiriu um gosto pelo álcool.  

A Videira e o Alvorecer da Viticultura

As uvas não ocorriam na África subsaariana, pelo que os hominídeos primitivos talvez consumissem outros frutos ricos em açúcares como os figos ou as marulas. Mas seria a versatilidade da videira (Vitis vinifera) o fator responsável por fazer das uvas o fruto mais adequado à produção de vinho. Todas as 8.000 a 10.000 castas existentes têm origem nesta planta.

A nossa espécie terá encontrado as primeiras videiras há cerca de 2 milhões de anos na região do Médio Oriente. Após colherem as uvas selvagens, os humanos devem ter percebido que bastavam alguns dias para que começassem a fermentar. O processo de fermentação ocorria de modo fácil e espontâneo graças à presença de leveduras nas películas das uvas. Este evento marcou a descoberta do vinho propriamente dito.

Porém, o cultivo organizado das videiras apenas ocorreria muito mais tarde. O palco desta domesticação inicial foi a região transcaucasiana entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. Ainda hoje, as videiras selvagens e domesticadas coexistem em países caucasianos como a Geórgia, a Arménia ou o Azerbaijão. E em nenhum outro local do mundo as videiras apresentam tamanha variabilidade genética.

Existe, porém, uma diferença assinalável entre as variedades selvagens e domesticadas da videira: é que estas últimas exigem cuidados contínuos na forma de irrigações, podas e proteções contra pragas e animais. Ao selecionar artificialmente as uvas que desejava na produção do vinho, o Homem levou a que as variedades domésticas ficassem muito mais fracas perante ameaças externas.

As videiras domésticas requerem, pois, populações de agricultores e não de nómadas caçadores-recoletores. E foi, efetivamente, o dealbar da agricultura há cerca de 11.000 anos que iniciou também a viticultura pensada e coordenada.

Das Primeiras Adegas à Expansão Inicial da Viticultura

Todavia, os vestígios mais antigos de vinho remontam apenas a 6000 a.C. A sua produção terá surgido inicialmente na atual Geórgia, local onde foram encontrados muitos potes com capacidade superior a 300 litros (o equivalente a cerca de 400 garrafas modernas). Segundo os arqueólogos, tal quantidade de vinho exigiria a presença de vinhedos bem organizados e de métodos de clonagem e transplantação semelhantes aos usados atualmente.

Da Geórgia, a viticultura expandiu-se depois para o Irão (5000 a.C.), para a Grécia (4500 a.C.) e para a Sicília (4000 a.C.). Datada de 4100 a.C., a primeira grande adega foi encontrada na Arménia numa gruta repleta de maravilhas arqueológicas.

Curiosamente, as evidências de fermentação alcoólica precedem a produção do vinho obtido somente pelas uvas. Com quase 9000 anos, tais evidências foram encontradas na China. A bebida em causa possuía como ingredientes não só frutas, mas também mel e arroz.

A invenção da cerâmica durante o Neolítico propiciou depois o armazenamento e a fermentação controlada do sumo da uva. Potenciou também o aumento do teor alcoólico na bebida obtida, o que era muito do agrado das primeiras populações sedentárias. A recolha de bagas silvestres pelos nómadas apenas originava bebidas com fraco teor de etanol.

E foi possivelmente deste teor alcoólico aumentado que surgiu a associação fundamental entre o vinho e a religião. A vivência dos estados mentais transmitidos pela ingestão da bebida alcoólica era interpretada como uma aproximação ao divino. Além disso, antes de se compreender a bioquímica da fermentação, a transformação do sumo da uva em vinho era vista como obra dos deuses.

O Vinho como Dádiva do Divino

Cedo o vinho começou a ser considerado como um verdadeiro presente divino capaz de inspirar sentimentos de afeto, comunhão e celebração. Segundo os gregos antigos, por exemplo, Dionísio teve tanto sucesso pela sua suposta descoberta do vinho que foi agraciado com o estatuto de deus da fertilidade. O seu equivalente romano era Baco, o qual inspirou festas gigantescas durante as vindimas às quais se deu o nome de ‘bacanais’.

Antes, já os persas haviam atribuído a descoberta da bebida sagrada a uma mulher caída em desgraça perante o lendário Rei Jamshid. Desesperada, tentou o suicídio ao beber um líquido estranho que encontrou num jarro com restos de uvas estragadas. O efeito, no entanto, foi bem diferente do esperado.

Para os egípcios faraónicos, o vinho assumia um papel cerimonial frequentemente retratado em pinturas funerárias associadas aos rituais do descanso eterno após a morte. Os vinhos mais raros e preciosos, como o tinto Shedeh, eram considerados especialmente sagrados.

E desde os tempos bíblicos que o vinho tem assumido um papel central nos rituais do judaísmo como o Kiddush (a bênção recitada para santificar o Shabbat, o dia de descanso). Este papel foi depois reforçado no cristianismo como símbolo do sangue de Cristo na celebração da Eucaristia.

Por outro lado, e embora o seu consumo fosse usualmente proibido pelo Islão, a produção de vinho nos territórios islâmicos sofreu grande impulso durante a Idade de Ouro desta religião. Alquimistas como Geber (o pai da química árabe) desenvolveram a destilação do vinho para fins medicinais e de produção, algo que contribuiu para inovações no artesanato, nos perfumes e nas práticas dos cuidados de saúde.

A Expansão Mediterrânica e o Legado Romano

A produção de vinho teve uma expansão significativa pelo Mediterrâneo durante a Idade do Bronze. Foi nesta altura que a vinificação metódica terá chegado às costas do futuro território de Portugal. Os responsáveis foram fenícios e gregos, mestres do comércio e da navegação que disseminariam a viticultura pelas penínsulas Balcânica, Itálica e Ibérica, assim como pelo Magrebe.

Os romanos elevaram ainda mais a viticultura ao estabelecerem as fundações para o vinho europeu. Na verdade, o Império Romano criou quase todas as regiões vinícolas atuais no sul do continente e introduziu técnicas como o envelhecimento ou a categorização sistemática dos vinhos.

Textos romanos, como os do filósofo Plínio, o Velho, já mencionavam práticas como o enxerto das videiras. E análises genéticas recentes vieram demonstrar que muitas das castas europeias da atualidade - como a Amigne, a Syrah ou a Pinot Noir - são cópias virtuais das variedades romanas.

Embora muitos fatores influenciem o sabor do vinho (como o clima, a temperatura ou o momento da colheita), estes estudos mostram que os romanos sabiam bem como escolher boas uvas. Após a queda de Roma, coube à Igreja Católica preservar e expandir o conhecimento vitivinícola durante a Idade Média. Este processo teve a participação basilar das ordens religiosas.

O vinho iniciou depois um novo capítulo com a exploração europeia do mundo a partir do século XV. Nisto, Portugal assumiu uma função incontornável ao levar o vinho para a África, para o Extremo Oriente e para as Américas.

E seria precisamente da América do Norte que surgiria uma ameaça fatal para a viticultura global no século XIX - a temível filoxera. Felizmente, nesta época, a ciência agrária e as técnicas de enxertia já estavam suficientemente desenvolvidas para salvar a indústria deste pernicioso inseto.

A Afirmação Global do Vinho num Contexto em Mudança

Hoje, o vinho é produzido em todos os continentes com exceção da Antártida. Com o tempo, a vinha tornou-se uma das culturas mais valiosas do mundo. Em paralelo, os mercados – especialmente o asiático – têm vindo a abraçar o consumo de vinho e a reforçar o seu estatuto de bebida universal.

Mas as regiões vitivinícolas tradicionais podem estar sob ameaça devido às alterações climáticas. Ainda assim, estas regiões têm resistido melhor do que o previsto pelos especialistas. As partes mais frescas da Europa beneficiaram com o aquecimento global (há quem afirme inclusivamente que a região inglesa de Essex ‘roubou’ o clima da Borgonha), enquanto as vinhas mediterrânicas continuam a prosperar graças à inusitada adaptabilidade da Vitis vinifera. Todavia, para a videira, ninguém sabe ao certo quão quente será demasiado quente.

Para preparar o futuro, regiões históricas como Bordéus já começaram a estudar a introdução de castas como a nossa inimitável Touriga Nacional. Noutras regiões, os viticultores estão a experimentar a plantação de vinhas a altitudes superiores a 1.000 metros.

Todavia, é exigido a muitos produtores de renome que os seus vinhos reflitam fielmente o terroir de origem. Por vezes, estes terroirs são minúsculos e confinados a uma pequeníssima área de terreno (tal como sucede no caso dos vinhos da Romanée-Conti ou Château Lafleur). Isto limita, obviamente, a capacidade destes produtores em mudar de castas ou de lugares.

Um Olhar no Futuro com Valores Bem Presentes

Mais ainda, os estudos projetam que as zonas da Europa adequadas ao cultivo das vinhas irão aumentar em quase 50% até 2100. Áreas como o sul da Escandinávia, o Báltico ou o Canal da Mancha serão, caso haja vontade, alguns dos novos centros vinícolas do Velho Continente. A concorrência aos países estabelecidos, como Portugal ou Itália, poderá aumentar significativamente.

As ameaças ao nosso ambiente e modo de vida são a razão pela qual a Quinta da Alameda pugna pela implementação de práticas de ética e sustentabilidade. Sabemos que os vinhedos do futuro poderão ser muito diferentes dos do presente. Mas também sabemos que a qualidade dos nossos vinhos será mantida nos anos vindouros. Por isso, com a Quinta da Alameda, terá certamente oportunidade para continuar a aproveitar com prazer a sua mutação da enzima ADH4. Saúde!