Parecia um mundo quase intocado. Diz a lenda que as suas florestas eram tão densas e tão extensas que um esquilo podia atravessar todo o território, desde os Pirenéus até Gibraltar, sem tocar com as patas no solo.
Aqui e ali, porém, a paisagem estava salpicada com povoamentos humanos rodeados de muros ou fossos defensivos – sim, porque mais cedo ou mais tarde, inimigos iriam inevitavelmente brotar da escura floresta.
Na sua proximidade, os habitantes destes povoamentos ergueram impressionantes estruturas megalíticas – menires, dólmens e cromeleques – que serviriam como testemunhas imutáveis das suas crenças e misteriosos hábitos.
Ainda hoje na base genética dos Portugueses, tais habitantes tinham nascido da mescla entre nómadas nativos e agricultores com origem na distante Anatólia.
Estávamos aqui na transição entre o Neolítico e o Calcolítico. À época, no que seria Portugal, estes povos devem ter feito as primeiras tentativas sérias para domesticar uma trepadeira de doces bagas que subia pelas árvores dos rios e riachos. Os vestígios que atestam tais tentativas abrangem fitólitos, cerâmicas, análises polínicas, grainhas antigas e ADN vegetal.
De facto, as provas arqueológicas demonstram que a videira (Vitis vinifera) estava já bem estabelecida antes do aparecimento das primeiras civilizações ibéricas. Em particular, os estudos palinológicos - isto é, os estudos do pólen fossilizado - revelam a presença de vinhas selvagens nos vales do Tejo e do Douro datadas de há cerca 4000-5000 anos atrás.
Porém, isto não fornece evidências diretas de vinificação. O mesmo sucede relativamente às grainhas de uvas carbonizadas que foram expostas no Algarve e no Rio Sado. Alguns acreditam, todavia, que as videiras selvagens subsistiam na Ibéria desde o remoto período Terciário, o qual findou há cerca de 2.6 milhões de anos atrás.
Com tanto tempo de coexistência, as vides autóctones já tinham certamente dado a estes habitantes um primeiro vislumbre do vinho. Isto não seria uma surpresa, dado que o sumo das uvas esmagadas tende a fermentar mesmo sem qualquer intervenção humana.
Mas é claro que estes vinhos espontâneos eram muito diferentes dos atuais. Sem as técnicas de vinificação que chegariam muito mais tarde, o seu perfil gustativo estaria entre o agreste e o rudimentar, muito taninoso, com acidez excessiva e nuances assaz terrosas.
Ainda assim, para os povos de então, cada trago deste líquido deve ter representado um estímulo inebriante e uma promessa de delícias futuras.
Tal promessa seria finalmente realizada com os riquíssimos Tartéssios, um povo que deixou em Portugal testemunhos como as indecifráveis escrituras da Estela VI de Fonte Velha (imagem acima).
A enigmática civilização tartéssia conquistou um estatuto quase lendário pela sua astúcia no comércio de metais preciosos e pelo seu súbito e inexplicável desaparecimento do registo arqueológico.
Todavia, os Tartéssios não comerciavam apenas ouro e prata. Também deverão ter comerciado vinho produzido em locais hoje conhecidos como Alentejo e Algarve.
Só podemos imaginar as sensações que os seus vinhos despertavam — devido aos métodos de conservação primitivos, talvez fossem doces, resinosos e com um final que evocava frutos secos ou amêndoas torradas.
Chegados do Levante, os Fenícios estabeleceram feitorias e pequenos entrepostos na linha de costa que se estendia de Olisipo (Lisboa) à antiga Baesuris (Castro Marim).
Exímios mercadores e navegadores, introduziram no território Tartéssio não só tecnologias agrícolas avançadas, mas também castas exóticas e técnicas de vinificação mais inovadoras. Revolucionaram igualmente o transporte e armazenamento do vinho através dos seus odres de pele e famosas ânforas de barro.
O seu intercâmbio cultural com os povos locais modificou gradualmente o perfil dos vinhos ibéricos, os quais se tornaram mais complexos e aromáticos.
Mas ainda assim permaneceram doces, dado que os Fenícios nos trouxeram castas como a açucarada Moscatel – estas castas tinham uma origem próxima da pátria fenícia no Mediterrânio oriental, tal como denunciado pela referência ‘de Alexandria’ (no Egito) dada às uvas da família Muscat.
Virtualmente inalteradas desde esses tempos pré-cristãos, estas uvas – mostradas acima - são hoje usadas na produção dos vinhos licorosos de Setúbal e de outras geografias.
Menos atreitos aos aromas adocicados, os Gregos aportariam pouco depois ao nosso litoral sul e sudoeste. Com eles chegaram podas mais especializadas, modos mais eficazes de prensagem das uvas e o curioso hábito de suavizar o vinho com água (para os helénicos, só povos bárbaros ou pouco refinados bebiam vinho não diluído).
Amantes da ordem, os Gregos também prezavam uma fermentação devidamente controlada.
Crateras gregas encontradas nas imediações de Alcácer do Sal sugerem que a cultura helénica elevou o vinho de bebida rústica a componente insubstituível de rituais sociais elaborados.
As ‘crateras’ eram grandes vasos usados na diluição dos vinhos para festas filosóficas, eventos religiosos ou simpósios (os banquetes gregos).
A utilização grega de taças específicas - como as kylix mostradas acima - também mostra que o vinho não era apenas uma bebida alcoólica, mas também um veículo social, cultural e de estatuto hierárquico.
Com toques de salinidade advindos da fermentação em zonas litorais, é possível que estes vinhos helénicos exibissem aromas subtis e bem polidos de figos secos e ervas aromáticas.
Os Celtas penetraram o norte e centro do território durante o primeiro milénio antes de Cristo. Ao longo do tempo, acabaram por se fundir com os povos ibéricos e formaram a civilização celtibera.
Os Celtas introduziram utensílios de ferro na agricultura do norte peninsular, algo que aumentou substancialmente a eficiência do cultivo e da colheita.
A sua mestria metalúrgica ajudou também no desenvolvimento da tanoaria e da armazenagem das bebidas fermentadas.
Embora fossem mais dados à cerveja e ao hidromel, o conhecido gosto Celta por festins e convívios reforça a ideia de que o vinho foi bem acolhido no seu seio.
Mais ainda, apesar de não existirem provas definitivas que liguem os Celtas a castas específicas, há indícios de que favoreceram a expansão de videiras resistentes ao frio e adequadas a solos pobres de zonas húmidas ou montanhosas (como o Dão ou o Minho).
Além de terem plantado castas que viriam a integrar o encepamento típico de Portugal, trouxeram consigo um vasto repertório mítico associado às culturas agrícolas: para os Celtas da Ibéria, a vinha poderá ter sido associada à fertilidade e ao ciclo da vida, num simbolismo que perdurou até hoje na cultura portuguesa.
Esta conceção foi depois ampliada e reforçada pelos inimigos que os destronariam do poder após uma luta de séculos: os Romanos que inevitavelmente brotaram da escura floresta. Mas essa história fica para um próximo capítulo...