A Origem do Vinho: o Divino, o Homem e as Videiras

A origem do vinho pode ser encontrada na sombra de um imponente vulcão situado no Cáucaso. E este não é um vulcão qualquer: é que o Ararate, segundo a Bíblia, foi o local onde Noé e a sua Arca repousaram durante as torrentes do Dilúvio.

Terminadas as chuvas cataclísmicas, Noé quis saber se a Terra já estava seca e habitável nos vales abaixo. Para isso, soltou uma pomba que mais tarde retornou à Arca com um ramo verde de oliveira. Feliz, Noé viu assim que a vida tinha renascido de acordo com a vontade de Deus.

Ainda hoje símbolo universal da paz, esta pomba poderia ter perfeitamente voltado com uma viçosa parra de videira. Sim, porque esta região de vulcões e montanhas bíblicas é também a origem geográfica primordial da planta que nos dá as uvas – a videira (Vitis vinifera).

Um Pequeno Vilarejo com Uma Grande História

Não muito longe do Ararate, é igualmente possível encontrar as primeiras provas arqueológicas da vinificação sistemática destas uvas ancestrais. Apenas nos temos de deslocar a sul, até ao ponto em que a paisagem castanha e ressequida dá lugar a uma pequena mancha verdejante dividida pelo rio Arpa.

Aí encontraremos o vilarejo de Areni, o qual também empresta o seu nome à casta das uvas mais famosas da Arménia. A relação íntima entre o vinho e este vilarejo remete ao esquecido reino de Urartu, uma civilização da Idade do Ferro que floresceu no local 800 anos antes do nascimento de Cristo.

Famosa pela exportação de vinho para a antiga Assíria, Urartu detinha vastas instalações que armazenavam milhares de litros do precioso néctar. Cerca de 400 anos mais tarde, até o filósofo e historiador grego Xenofonte se espantou com tamanho manancial vinícola.

Ainda assim, a ligação de Areni ao vinho remonta a tempos muitíssimo mais remotos. Com efeito, numa caverna próxima, os arqueólogos encontraram evidências da produção de vinho com muitos milhares de anos. Tal achado reescreveu a história e revelou uma linhagem vitivinícola que antecedia a própria palavra escrita.

A Caverna Onde o Tempo Não Castiga

A caverna de Areni é rica em prodígios arqueológicos. Primeiramente mapeada quando a Arménia era ainda uma república soviética, as suas profundezas revelaram camadas de atividade humana que se estendiam ao longo de centenas de milhares de anos.

Tal atividade começou com os caçadores-recolectores da Idade do Gelo e apenas terminou em tempos relativamente recentes. Aí foi encontrado o mais antigo sapato do mundo - com 5500 anos e feito em pele, tal como mostrado abaixo - assim como o macabro crânio de uma adolescente ruiva. De modo quase inconcebível, este crânio ainda continha o respetivo cérebro 6000 anos após a inumação.

Tais achados de entidades perecíveis mostram que a caverna possui um ambiente interno capaz de preservar matéria orgânica por tempo indefinido. Entre a matéria orgânica está, precisamente, aquela que prova a vinificação metódica das uvas.

A Primeira de Todas as Adegas

Estas provas começaram a aparecer em 2007, ano em foi desenterrada uma bacia de barro inclinada que conduzia a um contentor de cerâmica embutido no solo.

Perplexos, os arqueólogos não estavam a entender qual a função deste inusitado engenho. Mas logo depois encontraram sementes e engaços de uvas. Além disso, nas proximidades, foram também expostos jarros com resíduos de malvidina que haviam resistido por mais de 60 séculos. Ora, a malvidina é um dos pigmentos naturais responsáveis pela cor do vinho tinto.

Inebriados pela sensação de descoberta, os arqueólogos perceberam finalmente que tinham acabado de encontrar uma adega e um sistema primitivo para prensar uvas.

Depois de esmagadas na bacia, o seu sumo escorria naturalmente para o jarro de fermentação situado no chão. Por fim, o líquido fermentado era transferido para vasilhas próximas com vista a envelhecer no ambiente seco, escuro e estável da caverna.

Estes artefactos constituem os mais antigos testemunhos físicos da arte de vinificar sistematicamente os frutos da Vitis vinifera.

Todavia, já havia sido descoberto no Irão um jarro datado de há mais de 7400 anos. Este jarro iraniano continha ácido tartárico - um outro composto encontrado nas uvas – assim como resina de terebinto. A mistura destes compostos sugeria a presença de um vinho preservado com matéria resinosa, tal como sucede no atual retsina grego. Mas este achado não passava de um testemunho circunstancial.

Em 2024, na Bulgária, foram também encontrados possíveis vestígios de vinho com 8000 anos de idade. Os vestígios foram descobertos sobre artefactos em ouro na Necrópole Calcolítica de Varna - aparentemente, os povos locais tinham o hábito de aspergir vinho sobre os seus mortos.

Porém, ao contrário destes vestígios, a adega de Areni é a confirmação plena do caráter intencional da produção organizada de vinho (e não de uma simples fermentação acidental do sumo da uva). Areni também demonstra a transição entre a vida nómada e a emergência das sociedades agrícolas do Neolítico.

O Vinho: Um Brinde à Alvorada da Civilização

Esta transição não foi apenas um ajuste no estilo de vida - foi, sim, o alicerce para a explosão de novas tecnologias e para o surgimento de civilizações extensas, estruturadas e complexas. E tudo isto devidamente acompanhado por vinho.

A revolução do Neolítico pressupôs, é claro, a domesticação de animais e plantas. É sabido hoje que a videira foi, na verdade, uma das primeiras plantas que os antigos quiseram domesticar.

As origens desta domesticação reportam provavelmente ao Cáucaso do Sul, um local onde as vinhas estão profundamente enraizadas na cultura desde épocas imemoriais. Mas, para o homem do Neolítico, o que tornou a videira tão atrativa face a outras plantas de fruto?

Os Cachinhos Dourados das Videiras (e da Vida)

Existe um nome específico para o alinhamento das condições ideais que levam a um determinado resultado feliz e improvável.

Denominado de ‘goldilocks’ - ou ‘cachinhos dourados’, no Inglês - o alinhamento destas condições perfeitas parece criar magia extraordinária a partir de componentes ordinárias. Como se verá de seguida, o vinho surge literalmente dos ‘cachinhos dourados’ das uvas.

Estes alinhamentos ideais são melhor entendidos através de exemplos concretos. Com ou sem Dilúvio, a própria existência da vida na Terra é um desses exemplos. Senão vejamos:

Se a Terra estivesse um pouquinho mais próxima do Sol, então seria demasiado quente para ter vida; porém, se a Terra estivesse um pouquinho só mais afastada, então seria demasiado fria para ter vida.

Por outro lado, se a Terra estivesse um pouco mais ou menos afastada do Sol, então a água nunca poderia estar no estado líquido: ou teríamos gelo a cobrir a Terra ou teríamos apenas vapor de água. Isto iria inviabilizar a vida tal como a conhecemos.

Mais ainda, se a Terra fosse um planeta maior, então o seu campo gravítico aumentado poderia sujeitar a superfície ao ataque constante de asteroides e meteoritos. Mas, se fosse menor, o seu campo gravítico nunca poderia reter uma atmosfera gasosa que protegesse a vida da letal radiação cósmica.

E por aí vai. Ao todo, os cientistas identificaram 17 fatores adicionais que se alinharam perfeitamente para que os seres vivos pudessem existir. Este efeito é tão improvável que há hoje quem nele veja a mão de Deus na criação da vida.

O Vinho Como Ponte entre o Sagrado e o Humano

Todavia, hoje como no passado, a mão de Deus sempre foi vista na criação do vinho. Isto é devido ao efeito ‘goldilocks’ que preside à combinação única e improvável das características das uvas. Vejamos porquê:

As uvas possuem um teor naturalmente ajustado de açúcares que propicia uma boa fermentação natural. Esta concentração ideal de açúcar permite também a produção de uma bebida com teores alcoólicos ‘perfeitos’ com vista à sua preservação, por um lado, e à sua degustação segura, por outro. Em geral, tal não sucede com outros frutos.

A fermentação é também potenciada pela afortunada presença de leveduras naturais nas películas. O processo de autoinoculação das leveduras amplifica a produção de vinho.

As uvas possuem também uma acidez equilibrada que melhora o perfil sensorial da bebida delas nascida. Ao mesmo tempo que veicula frescura, esta acidez evita que o vinho tenha um sabor insípido ou excessivamente doce. A vasta maioria dos outros frutos ou não possui acidez suficiente, ou apresenta uma acidez excessiva para o palato humano.

Mais ainda, as uvas contêm taninos que contribuem para a agradável textura e estrutura do vinho. Além disso, os taninos melhoram o potencial de envelhecimento e a complexidade da bebida vinificada. A maioria das outras frutas não possui os níveis de taninos necessários à criação de resultados semelhantes.

E as videiras são hermafroditas e autofecundantes, algo que simplifica o seu cultivo em comparação com outras plantas frutíferas. Por fim, as uvas são altamente adaptáveis a diferentes solos, climas e agentes patogénicos. São também assaz produtivas e geneticamente maleáveis.

Esta genética, abundância e adaptabilidade levou ao desenvolvimento de uma grande variedade de castas que respondem a diferentes preferências e condições ambientais do terroir.

Com efeito, da pesada massa dos Barossa à subtil graciosidade dos vinhos do Dão, nenhum outro fruto consegue produzir bebidas com características tão distintas, mas ainda assim tão unas e coerentes.

Porém, ainda nos falta abordar o último fator de alinhamento: o álcool do vinho e os seus efeitos sobre a perceção da espiritualidade. Desde muito cedo na história humana que estes efeitos foram ligados a contextos rituais estruturados.

Esta é uma tradição que persiste há milhares de anos e de que são exemplos o vinho sacramental da liturgia cristã ou os brindes sociais à saúde, felicidade e prosperidade.

Advinda deste alinhamento ideal, a origem do vinho é assim física e concreta, mas também metafísica e espiritual: é que, de certo modo, o vinho sempre permitiu que o humano tocasse no divino.

Por isso, tivesse o crente Noé ido em busca de vida no lugar da pomba, certamente traria para a Arca não um ramo de oliveira, mas antes um ramo viçoso dessa extraordinária planta - a videira e as suas uvas.