Corria o ano de 1871. Num Portugal volátil e em atraso, a destruição da filoxera tinha acabado de chegar ao país a partir das encostas do Douro. Descontentes, os jovens Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão lançavam a primeira edição de ‘As Farpas’, um marco da literatura que serviu de crítica mordaz à política e sociedade nacionais da época.
Entretanto, no mesmo ano, Lewis Carroll lançava também uma obra que se viria a tornar referência na literatura universal: a famosa novela ‘Alice do Outro Lado do Espelho’, a qual tanto animaria a próspera mas sombria Inglaterra.
Uma das personagens mais memoráveis dessa obra é a Rainha Vermelha, a monarca xadrezista do País das Maravilhas. Não fosse Carroll britânico, seria até possível especular que a personalidade da Rainha Vermelha se baseou na personalidade de uma outra rainha vermelha - a Touriga Nacional, a mais prestigiosa das castas tintas portuguesas.
Tal como a figura régia de Carroll, a Touriga Nacional exala uma autoridade inata que a destaca no tabuleiro de xadrez da viticultura. E os motivos para isso são muitos e bons.
No universo da novela, a exigente Rainha Vermelha é uma figura paradoxal de intensidade e graça. De forma semelhante, a Touriga Nacional é uma casta exigente e de contrastes: poderosa mas elegante, capaz de produzir vinhos com uma estrutura profunda e imponente, porém equilibrados num pedestal de sofisticação aromática.
Reina na vinha com natureza altiva, exigindo cuidados meticulosos e condições que estejam à altura do seu estatuto. Daí que a afamada citação da Rainha Vermelha “É preciso correr o mais rápido que puderes só para permaneceres no mesmo lugar” capte bem a relação entre os enólogos e a Touriga Nacional.
De facto, para desbloquear verdadeiramente o seu potencial, é necessário superar inúmeros desafios como a difícil condução das suas vinhas, os parcos rendimentos da casta ou a sua exagerada vitalidade foliar.
Mas a Touriga Nacional não é suscetível a doenças fúngicas ou à podridão cinzenta. Ainda assim, precisa de níveis adequados de pluviosidade e pode padecer com períodos demasiado prolongados de seca.
Contudo, uma vez acarinhada, a Touriga Nacional recompensa o esforço com vinhos de longevidade, concentração e profundidade exemplares.
Mas até no aspeto visual há paralelismos entre as duas monarcas desta analogia. A Rainha Vermelha, adornada em esplendor carmesim, tem perfeito reflexo nos intensos tons rubi dos vinhos de Touriga Nacional. O bouquet da casta também espelha a personalidade estratificada de Carroll — floral mas incisiva, sedutora mas assertiva.
Não menos imperiosa no paladar, os seus taninos moldam o vinho com regras vincadas e finais tão inolvidáveis como as declarações ousadas da Rainha ficcional.
Tanto o Dão como o Douro reivindicam o berço da casta. Com efeito, a sua maior variabilidade genética na primeira destas regiões sugere uma origem na Beira Alta. É por isso aventado que tenha surgido na povoação de Tourigo, nas imediações de Tondela.
Contudo, o debate ainda se mantém aceso. Certo é que o planalto elevado do Dão oferece condições excecionais à formação de Tourigas Nacionais estruturados e de elegância clássica.
Os registos históricos indicam que a cultura da casta remonta, pelo menos, ao final do século XVIII. Pouco mais tarde, a Touriga Nacional assumiu o seu lugar como protagonista na vasta maioria dos vinhos produzidos no Dão.
No entanto, este período áureo foi interrompido pela devastação da filoxera no final do século XIX. Após a crise - e devido à sua baixa produtividade - a Touriga Nacional foi considerada pouco viável e acabou substituída por outras castas.
A opção dada à quantidade em detrimento da qualidade teve um impacto profundo na nossa rainha. No início do século XX, de forma quase incompreensível, estava próxima da extinção. Felizmente, tinha já deixado descendência na forma da Touriga Franca.
Porém, a Rainha viria a recuperar o seu estatuto graças à intervenção dos produtores do Douro. Redescoberta a sua capacidade ímpar de vivificar os cinco sentidos, a Touriga Nacional retornou ao seu merecido lugar no trono da enologia nacional.
É comum uma certa casta exibir acidez interessante, mas aromas contidos ou insignificantes. Também é comum encontrar castas muito perfumadas, mas destituídas de corpo ou acidez.
Incomum é encontrar uma casta que junte predicados quase antagónicos. Mas esse é precisamente o caso da Touriga Nacional. Os vinhos da casta agregam complexidade, acidez elevada, aromas intensos, excelente estrutura e grande potencial de envelhecimento.
Apesar de não ser tintureira, a Touriga Nacional também produz vinhos de cor densa e profunda. Isto advém das azuladas e espessas películas das uvas, as quais são pródigas em compostos como as antocianinas. Estes compostos transmitem aos vinhos jovens uma coloração tão opaca que, nas provas cegas, é o anel púrpura no copo que os denuncia. A casta é também agraciada com taninos sofisticados, simultaneamente saborosos e de fina textura.
Por outro lado, as suas bagas pequenas propiciam vinhos de sabor concentrado e grande extração. A boa acidez contribui para a frescura e expressividade destes vinhos afirmativos mas equilibrados.
Tudo isto é envolto em fragrâncias de violetas complementadas por notas balsâmicas ou frutadas de bergamota, framboesa e groselha preta. Em parte, tal perfil aromático advém dos abundantes terpenos livres encerrados nas uvas da casta.
Curiosamente, os terpenos são frequentes nos brancos, mas não nos tintos – mas assim é a Touriga Nacional, uma casta que parece reivindicar o melhor das outras. O resultado final é uma sincronia de flores, frutas e especiarias, sempre arrebatadora e exuberante.
Dos tintos robustos aos rosés delicados, passando pelos melhores Porto vintage e por estilos monovarietais, a casta assume a liderança numa série de papéis.
Assaz adaptável, a Touriga Nacional responde magistralmente ao estágio em carvalho. É amplamente aceite que os seus vinhos beneficiam de um envelhecimento oxidativo lento e em sinergia com os aromas tostados da madeira nova.
O estágio em carvalho também aporta notas de cedro que complementam o caráter naturalmente especiado da casta. Do ponto de vista aromático, é uma casta de evolução tardia cuja complexidade frequentemente leva anos a ser desenvolvida, especialmente nos vinhos envelhecidos em garrafa.
Ainda assim, em terras do Dão, a Touriga Nacional faz emergir alguns dos melhores tintos de Portugal. Tal como nos vinhos da Quinta da Alameda, estes tintos demonstram uma ligação evidente ao terroir pela harmonia entre frescura, textura e autenticidade.
Estes vinhos tiram partido da maior altitude e pluviosidade do Dão em contraste com o Douro. Tal contexto resulta em vinhos mais graciosos, com uma acidez ligeiramente mais elevada e características florais mais pronunciadas. No Douro, os Tourigas Nacionais são usualmente mais opulentos e concentrados. Em qualquer dos exemplos, para lhe moderar os ímpetos, a rainha é frequentemente secundada por castas como a Tinta Roriz ou Alfrocheiro.
Mas a influência da casta não se restringe a regiões portuguesas como o Dão, o Douro ou o Alentejo. A sua qualidade e adaptabilidade já a disseminou por locais tão distantes como a Austrália, a Califórnia ou a África do Sul.
Porém, a grande consagração surgiu em 2019, quando os sempre autocentrados gauleses a aprovaram como uma das castas a plantar na região vinícola mais arquetípica de França: Bordeaux.
Luxuriantes e de palato enérgico, os Touriga Nacionais requerem pratos que consigam lidar com a sua personalidade arrebatada.
As carnes ricas ajudam a equilibrar os taninos e a realçar as qualidades mais sedosas da casta. Exemplos incluem as carnes grelhadas, estufadas ou assadas de vaca e borrego, assim como as carnes de caça como o veado ou javali. Os pratos de pato são também uma opção a considerar.
Há, no entanto, que evitar os vegetais verdes, as especiarias picantes e os alimentos muito ácidos. Os temperos devem ser simples para que não ofusquem os aromas florais mais etéreos.
Com a Touriga Nacional, as exceções de elevado aromatismo são os queijos de sabor forte ou fumado como o Serra da Estrela, o Queijo de Cabra Transmontano, o galego San Simón ou os queijos azuis, particularmente quando acompanhados por nozes.
Nas sobremesas, as escolhas podem passar por doces com café, chocolate ou frutos secos. Por fim, dado o seu grande potencial de envelhecimento, há que decantar o vinho para permitir que os sabores se abram totalmente no caso das safras mais antigas.
Se Portugal já teve um fenomenal D. João II como Príncipe Perfeito, hoje continua a ter uma Rainha Vermelha que parece demasiado perfeita para ser verdadeira.
Com efeito, os novos clones da casta vieram mitigar os baixos rendimentos que (injustificadamente) a penalizaram em tempos idos. Há que retirar lições destes erros do passado: a quantidade é mais barata, mas a qualidade é quase impagável.
Daí que produtores como a Quinta da Alameda tenham como propósito resgatar a singularidade do Dão através do enaltecimento dos seus valores ancestrais. A Touriga Nacional é um desses valores. Acompanhada por um séquito de castas da alta nobreza, os nossos vinhos deixam que a monarca os reine suprema.
E só assim pode ser, dado que esta é uma casta preparada para o futuro - em conjunto com os extraordinários atributos, a sua firmeza face às alterações climáticas obrigou até os franceses a curvarem-se à sua majestade.
A história da enologia nacional foi e será escrita no vermelho intenso da Touriga homónima. O destino desta casta é, portanto, o destino da vinicultura portuguesa. Um não existirá sem o outro. Longa vida à nossa Rainha!